sábado, 4 de fevereiro de 2012

O haver


Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura.
Essa intimidade perfeita com o silêncio...

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos.
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito.
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível.
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas.
Essa tristeza diante do cotidiano, ou essa
 súbita alegria ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória…

Resta essa vontade de chorar diante da beleza.
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido.
Essa imensa piedade de si mesmo...

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
de pequenos absurdos.
Essa tola capacidade de rir à toa.
Esse ridículo desejo de ser útil.
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar e transfigurar a realidade, 
dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como é.
E essa visão ampla dos acontecimentos.

Essa impressionante e desnecessária presciência.
E essa memória anterior de mundos inexistentes.
Esse heroísmo  estático.
E essa pequenina luz indecifrável
a que, às vezes, os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente.
E essa coragem indizível diante do Grande Medo.
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços.
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.
(...)

Vinicius de Moraes

Nenhum comentário: