sábado, 24 de maio de 2008

Insônia



00:27. Hora de criança dormir. Hora de criança mergulhar na insônia. Resignadamente. Hora de ouvir o silêncio. Hora de contar carneirinhos negros que da escuridão saltam no sem fundo. Hora de deslizar na lama da memória até concluir que não há saída - que nunca houve - que desde o início sempre foi tarde demais. Hora de congelar as horas até que amanheça. Horas mortas. Natimortas. Empilhadas na vala comum da insônia. Quanto tempo faz? Uma hora? Dez anos? 20?

01:40. Pensou ter pregado o olho. Gosta da expressão: pregar o olho. É o que pensa fazer quando quer parecer mórbida para si mesma: pregar os olhos com o grampeador. Não permitir que eles vislumbrem nada além da penumbra da alma.

02:10. Verifica as olheiras no espelho do banheiro. Lusco-fusco. Não precisa acender a luz para se ver. O vizinho de cima só dorme de luz acesa. O vizinho dorme, ela não. Verifica as olheiras. A cara de sono. Vai ficar pior amanhã se não dormir logo. Dormir é uma função fisiológica. Já não sonha mais. Contenta-se em ter pesadelos acordada até apagar. Sem sonhos. Dormir como uma pedra. E acordar com o despertador. Colocá-lo para tocar às 08:10. Assim mesmo chegará atrasada.

03:02. Sente as pálpebras pesarem. Sente os olhos arderem e doerem por dentro, do outro lado, fundo. Os olhos em suas órbitas fixas. Imóveis. Os carros passam lá fora, intermitentes, longínquos. Como sabe que são carros? Intrigante. Como sabe que são carros, não se apavora. Onde estará você agora? Quem é você? Você agora são tantos, são todos. Quantos são todos agora? "Você sabe que está pegando no sono quando começa a pensar estúpido...", pensa. A estupidez a tranqüiliza... "Bem-aventurados os estupidificados pela insônia porque eles dormirão tranqüilos..." Como pedras, como deuses mortos...

04:23. Levanta para beber água. Dormiu, mas tem a impressão que sonhou que não conseguia dormir. Ou não dormiu? Volta para a cama. Metal estala no banheiro. Faróis passam no teto. Sente medo. Criança tem medo de fantasmas. Gente tem medo de gente. Gente tem medo de solidão.

05:11. Sonhou. Pessoas correndo apavoradas e ela caída, perdida dentre aquele reboliço enorme. De repente uma mão é estendida a ela, que se levanta com os olhos fixos no chão até designar coragem suficiente para erguer a fronte e enxergar quem a salvara naquele momento. Ao elevar o olhar não vê um rosto, mas uma imagem distorcida de si mesma. Acorda. Os olhos bem abertos. Quer chorar e o choro é só uma ardência nos olhos. Quer falar e a voz é só um aperto no peito. Quer nem sabe o que e não tem ninguém em casa.

05:22. Não consegue dormir. Levanta-se cheia de decisão e coragem. Passa as trancas nas portas da rua. Deita. Ora.

05:30. Está chorando. Lágrimas escassas.

05:58. Os primeiros pássaros. As primeiras luzes do amanhecer. O cheiro do pão. Um ar mais frio que vem pelas frestas. Melhor não dormir mais. Ou vai dormir como uma pedra. E vai chegar atrasada. Ou não vai ouvir o despertador.

06:10. Melhor dormir. Só mais duas horas.Uma hora e cinqüenta, se dormir em dez minutos. Concentra-se. Já é quase dia.

06:17. Melhor levantar de uma vez. O corpo dói. A cabeça pesa. Ela não pensa em nada. Abre ao acaso um livro que está ao lado da cama: "Ouço vozes. Não são anjos/ nem tampouco são demônios: / sou eu que me escuto ao longe/ do fundo dos meus escombros”.

06:30. Levanta-se decidida. Escova os dentes. Toma banho. Veste-se. Tudo muito lentamente para que o tempo passe sem doer.

07:43. Ela está pronta. Não tem mais nada a fazer para matar o tempo. Sai. Lentamente sente o vento beijá-la pelo passeio de moto. Seus cabelos esvoaçantes a fazem sentir mais bela. Olha para os lados e não vê ninguém. Olha para dentro e está vazio também...

08:10. O despertador toca no vácuo do quarto cor de rosa.

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