terça-feira, 30 de setembro de 2008

Cotidiano...


Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia...
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor...
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora...
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas...
E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo à luz...
E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão...
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora...
A tomar café correndo porque está atrasado...
A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem...
A comer sanduíches porque já é noite...
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia...
A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra...
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos...
E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir...
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta...
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto...
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga...
E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E, a saber, que cada vez pagará mais...
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra...
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios...
A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade...
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos...
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural...
Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. A luta. À lenta morte dos rios...
E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta...
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer...
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá...
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço...
Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana...
E se no fim de semana não há muito que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado...
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele...
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito...
A gente se acostuma para poupar a vida...
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, perde-se de si mesma...

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